domingo, 2 de janeiro de 2011

As Cores, de Orígines Lessa

"Maria Alice abandonou o livro onde seus dedos longos liam uma história de amor. Como seria cor, e o que seria? Conhecia todas pelos nomes, dava com elas a cada passo nos seus livros, soavam aos seus ouvidos a todo momento, verdadeira constante de todas as palestras. Era, com certeza, a nota marcante de todas as coisas para aqueles cujos olhos viam..."

A cor é como o som, Maria Alice. Tudo que vibra faz barulho, e os ouvidos separam a nota alta da baixa, e sabem de onde elas vêm. Todas as superfícies vibram na forma de luz, e em tons tão agudos que apenas os olhos captam. Como tudo ressoa, mesmo estando parado, os olhos entendem onde estão as coisas distantes.


"Que seria a cor, detalhe que fugia aos seus dedos, escapava ao seu olfato conhecedor das almas e dos corpos, que o seu ouvido apurado não aprendia, e que era vermelho nas cerejas, nos morangos e em certas gelatinas, mas nada tinha em comum com o adocicado de outras frutas e se encontrava também nos vestidos, nos lábios...?"

Um violino, um piano, uma flauta e uma pessoa podem todos entoar um si ou um ré, sem ainda assim serem iguais ou assim tão parecidos. Também as cores não correspondem exatamente às coisas, que podem ser tão distintas em olfato e semelhantes ao toque


"Ver era saber que um quadro não constava apenas de uma superfície estranha, áspera e desigual, sem nenhum sentido para o seu mundo interior, por vezes bonita, ao seu tato, nas molduras, mas que para os outros figurava casas, ruas, objetos, frutas, peixes, panelas de cobre (tão gratas aos seus dedos), velhos mendigos, mulheres nuas e, em certos casos, mesmo para os outros, não dizia nada..."

Figuras são esculturas de cores, escrita num livro de tintas, substância pegajosa que dependendo da mistura produz esta ou aquela nota, esta ou aquela ideia. Grava-se na tela o objeto da imaginação, que às vezes sai meio parecida com o real, outras sai como uma maçã de plástico ou ainda uma bola de mesmo volume mas sem sabor, cheiro ou textura, não muito diferente do que fazem alguns escritores.

Natureza morta, Arcângelo Ianelli, 1960

"- Ponha hoje o vestido verde, Ana Beatriz...
Dizia aquilo um pouco para que não dessem conta da sua inferioridade, mais ainda para não inspirar compaixão. Porque a piedade alheia a cada passo a torturava e Maria Alice tinha pudor de seu estado."


Inferioridade! Compaixão! Maria Alice, as pessoas são todas inferiores se comparado ao que poderiam ver. Sabe o rádio onde escuta novelas e músicas? Pois as ondas hertzianas que trazem o áudio até o aparelho ao lado da poltrona vermelha é um tom inacessível da luz, essa substância misteriosa que propaga a cor como o ar propaga o som. Também as margaridas não são apenas amarelas, mas mostram formas que apenas os insetos enxergam, tão qual os cães ouvem sons mais agudos que os ouvidos ignoram.

Nebulosa do Caranguejo

"O branco era como barulho de água de torneira aberta. Cor-de-rosa se confundia com valsa. Verde, aprendera a identificá-lo com cheiro de árvore. Cinza, com maciez de veludo. Azul, com serenidade. Diziam que o céu era azul. Que seria o céu? Tinha mil e uma ideias sobre o céu. Deus, anjos, glória divina. Hendel. Bach. Mas sabia haver um outro, material sobre as pessoas e casas, feito de nuvens..."

O céu era o inacessível para o humano, tão alto que apenas os espíritos superiores lá viviam se deliciando com os maiores prazeres possíveis, habitando as nuvens, montanhas de água voadoras. Você sabe o que são montanhas...? Mesmo para nós, montanhas são objetos da imaginação - pode-se ver sua grandiosidade como um som que reverbera, tremendo os ossos e arrepiando os pelos, nossos corpos pequenos para o mundo como um grão de sal. Mas, ao toque, ela torna-se apenas terra e pedras.
Morro de Santo Antônio, Cuiabá

Mas que ia dizendo? Ah, sim, o céu. O lugar que é o céu é apenas o ar - quando o Sol passa no alto derramando cores sobre o mundo (uma delas você sente: chama-se calor), o azul se espalha pelo ar como um grito faz eco muitas vezes num salão muito grande. Os aviões caminham pelo céu e já fomos até mais alto do que ele - ultrapassamos onde antes habitavam os mais nobres seres. E quando o Sol vai embora, as cores se vão também e resta o negro, o silêncio, interrompido por estrelas que cintilam como os toques quase inaudíveis de uma caixa de música perdendo a corda.

"E agora Maria Alice voltava outra vez ao Instituto. E ao grande amigo que lá conhecera. Lembrava-se da ternura daquela voz, da beleza daquela voz. De como as palavras de amor tinham irrompido e suas bocas se encontrado... seus pais... da sala do diretor... falta de vigilância e moralidade... de quando ela disse que pretendia se despedir de um amigo com quem se queria casar, e o pai exclamara, horrorizado:
- Você não tem juízo, criatura? Casar-se com um mulato? Nunca!
Mulato era cor."


Por favor nos perdoe, Maria Alice. A visão cega os outros sentidos e parte da razão, e de súbito a cor e a forma valem mais que o gesto, as palavras e a verdade...

Margarida em ultravioleta