domingo, 21 de agosto de 2011

Sinfonia da Ciência

De início o Auto-tune parecia uma ferramenta simpática, que permitia corrigir pequenos erros na gravação de músicas, útil especialmente para álbuns de apresentação ao vivo. Logo descobriram que com a ferramenta podem fazer qualquer um cantar, e vocais absurdamente distorcidos são praxe no pop atual - que o digam Justin Bieber, Britney Spears, e (não clique nesse link) Rebecca Black.

E quando eu digo qualquer um, é qualquer um mesmo. A banda The Gregory Brothers é responsável pelo Auto-tune the news, onde criam músicas usando propagandas e notícias, fazendo vídeos hilários. Em 2010 eles ficaram famosos com Bed Intruder, o vídeo mais assistido do ano no Youtube!

Querendo entrar na brincadeira, o produtor John Boswell garimpou sua coleção de Cosmos em busca das passagens mais inspiradoras ditas por Carl Sagan[1], mesclou tudo em um vídeo e fez Carl cantar, com participação especial de Stephen Hawking. Há alguma ironia em remixar uma voz robótica, mas não consigo encontrar...

A recepção é muito variada: tem quem ria nos primeiros segundos; tem quem não suporte sua voz de Kermit the Frog; tem quem não suporte música eletrônica, ponto; e tem aqueles que, como eu, de início se mostraram reticentes e no segundo refrão já estavam cantando junto. Ouvi essa música sem parar por uma semana, e ainda não estou cansado. Bom, assista e tenha sua opinião.



"A still more glorious dawn awaits
Not a sunrise, but a galaxy rise
A morning filled with 400 billion suns
The rising of the Milky Way"

Lembro que nas primeiras semanas A Glorious Dawn ganhou a menção honrosa de vídeo mais bem avaliado do site. Até o momento, para cada pessoa que não gosta há 85 que gostam. Não achei nenhuma referência que comprove isso, talvez eu esteja confundindo com Where the hell is Matt?, mas confie em minha memória.

Ainda estou tentando entender porque o vídeo e a música tiveram um impacto tão profundo em mim. Para os impressionáveis como eu, a letra do refrão é de tirar o fôlego - imagine, ver a Via Láctea como alvorecer! Também, a música preenche um nicho onde não existe nada parecido, uma espécie de música gospel científica, a celebração da maravilha natural do mundo. Ao mesmo tempo, há uma pitada de humor (peraí, Stephen Hawking cantando!) que impede de levar a ideia muito a sério. Por fim, a melodia é muito muito boa.

Clique para ir ao site

Depois do sucesso do primeiro vídeo, John Boswell instituiu o projeto Symphony of Science [2], e vem lançando novas músicas com alguma regularidade, garimpando frases de entrevistas, programas e palestras de vários cientistas. Até o momento são 10 vídeos, e no álbum há uma faixa bônus. Você pode adquiri-lo aqui, pagando o quanto quiser, inclusive zero [3].

Exceto pela primeira música, cada uma das seguintes aborda um tema. Minhas preferidas são The Unbroken Thread (vida e evolução), The Case for Mars (exploração de Marte), A Wave of Reason (pensamento cético) e Ode to the Brain (cérebro, duh!)[4]. A qualidade varia, embora não há nenhuma que eu ache ruim - The Poetry of Reality e The Big Beginning são um pouco fraquinhas. O compositor tem alguns vícios (estrofes como verso A/verso B/verso A/verso C), mas o trabalho envolvido e a qualidade da música e vídeo compensam.

Por fim, outro dos meus favoritos (meh, quase todos são), Our Place in The Cosmos.



"Matter flowwws from place to place
And momentarily comes together to be you
Some people find that thought disturbing
I find the reality thrilling"
________ _______ ____ __
[1] O astrônomo Carl Sagan foi (e é) um divulgador de ciência que inspirou uma geração inteira nos anos 80 e 90, com a série de televisão Cosmos e alguns best-sellers. Se realmente não o conhecia, talvez essa seja uma boa oportunidade :)
[2] Músicos de eletrônica têm hábito de fazer bandas-de-um-homem-só ou no máximo duos.
[3] Eu paguei US$ 10, e foi a primeira vez que comprei música na internet.
[4] Assista a palestra de Jill Taylor no TED, onde ela conta como foi sua experiência de derrame. "And then it explodes into this enormous collage/And in this moment we are perfect/We are whole and we are beautiful"

domingo, 2 de janeiro de 2011

As Cores, de Orígines Lessa

"Maria Alice abandonou o livro onde seus dedos longos liam uma história de amor. Como seria cor, e o que seria? Conhecia todas pelos nomes, dava com elas a cada passo nos seus livros, soavam aos seus ouvidos a todo momento, verdadeira constante de todas as palestras. Era, com certeza, a nota marcante de todas as coisas para aqueles cujos olhos viam..."

A cor é como o som, Maria Alice. Tudo que vibra faz barulho, e os ouvidos separam a nota alta da baixa, e sabem de onde elas vêm. Todas as superfícies vibram na forma de luz, e em tons tão agudos que apenas os olhos captam. Como tudo ressoa, mesmo estando parado, os olhos entendem onde estão as coisas distantes.


"Que seria a cor, detalhe que fugia aos seus dedos, escapava ao seu olfato conhecedor das almas e dos corpos, que o seu ouvido apurado não aprendia, e que era vermelho nas cerejas, nos morangos e em certas gelatinas, mas nada tinha em comum com o adocicado de outras frutas e se encontrava também nos vestidos, nos lábios...?"

Um violino, um piano, uma flauta e uma pessoa podem todos entoar um si ou um ré, sem ainda assim serem iguais ou assim tão parecidos. Também as cores não correspondem exatamente às coisas, que podem ser tão distintas em olfato e semelhantes ao toque


"Ver era saber que um quadro não constava apenas de uma superfície estranha, áspera e desigual, sem nenhum sentido para o seu mundo interior, por vezes bonita, ao seu tato, nas molduras, mas que para os outros figurava casas, ruas, objetos, frutas, peixes, panelas de cobre (tão gratas aos seus dedos), velhos mendigos, mulheres nuas e, em certos casos, mesmo para os outros, não dizia nada..."

Figuras são esculturas de cores, escrita num livro de tintas, substância pegajosa que dependendo da mistura produz esta ou aquela nota, esta ou aquela ideia. Grava-se na tela o objeto da imaginação, que às vezes sai meio parecida com o real, outras sai como uma maçã de plástico ou ainda uma bola de mesmo volume mas sem sabor, cheiro ou textura, não muito diferente do que fazem alguns escritores.

Natureza morta, Arcângelo Ianelli, 1960

"- Ponha hoje o vestido verde, Ana Beatriz...
Dizia aquilo um pouco para que não dessem conta da sua inferioridade, mais ainda para não inspirar compaixão. Porque a piedade alheia a cada passo a torturava e Maria Alice tinha pudor de seu estado."


Inferioridade! Compaixão! Maria Alice, as pessoas são todas inferiores se comparado ao que poderiam ver. Sabe o rádio onde escuta novelas e músicas? Pois as ondas hertzianas que trazem o áudio até o aparelho ao lado da poltrona vermelha é um tom inacessível da luz, essa substância misteriosa que propaga a cor como o ar propaga o som. Também as margaridas não são apenas amarelas, mas mostram formas que apenas os insetos enxergam, tão qual os cães ouvem sons mais agudos que os ouvidos ignoram.

Nebulosa do Caranguejo

"O branco era como barulho de água de torneira aberta. Cor-de-rosa se confundia com valsa. Verde, aprendera a identificá-lo com cheiro de árvore. Cinza, com maciez de veludo. Azul, com serenidade. Diziam que o céu era azul. Que seria o céu? Tinha mil e uma ideias sobre o céu. Deus, anjos, glória divina. Hendel. Bach. Mas sabia haver um outro, material sobre as pessoas e casas, feito de nuvens..."

O céu era o inacessível para o humano, tão alto que apenas os espíritos superiores lá viviam se deliciando com os maiores prazeres possíveis, habitando as nuvens, montanhas de água voadoras. Você sabe o que são montanhas...? Mesmo para nós, montanhas são objetos da imaginação - pode-se ver sua grandiosidade como um som que reverbera, tremendo os ossos e arrepiando os pelos, nossos corpos pequenos para o mundo como um grão de sal. Mas, ao toque, ela torna-se apenas terra e pedras.
Morro de Santo Antônio, Cuiabá

Mas que ia dizendo? Ah, sim, o céu. O lugar que é o céu é apenas o ar - quando o Sol passa no alto derramando cores sobre o mundo (uma delas você sente: chama-se calor), o azul se espalha pelo ar como um grito faz eco muitas vezes num salão muito grande. Os aviões caminham pelo céu e já fomos até mais alto do que ele - ultrapassamos onde antes habitavam os mais nobres seres. E quando o Sol vai embora, as cores se vão também e resta o negro, o silêncio, interrompido por estrelas que cintilam como os toques quase inaudíveis de uma caixa de música perdendo a corda.

"E agora Maria Alice voltava outra vez ao Instituto. E ao grande amigo que lá conhecera. Lembrava-se da ternura daquela voz, da beleza daquela voz. De como as palavras de amor tinham irrompido e suas bocas se encontrado... seus pais... da sala do diretor... falta de vigilância e moralidade... de quando ela disse que pretendia se despedir de um amigo com quem se queria casar, e o pai exclamara, horrorizado:
- Você não tem juízo, criatura? Casar-se com um mulato? Nunca!
Mulato era cor."


Por favor nos perdoe, Maria Alice. A visão cega os outros sentidos e parte da razão, e de súbito a cor e a forma valem mais que o gesto, as palavras e a verdade...

Margarida em ultravioleta